quinta-feira, 8 de julho de 2010

"Asas do desejo", de Wim Wenders - Uma análise biblioteconômica.

"Asas do desejo", do diretor Wim Wenders (1987), cuja tradução literal do alemão seria "O céu sobre Berlim" (Der Himmel über Berlin), é um filme ora monocromático, ora colorido. Um filme polifônico, polilíngue. Múltiplas histórias se desenrolam. "Asas do desejo" é um filme sobre tudo, se o desejar. Pode ser um filme sobre anjos sobrevoando Berlim. Sobre um anjo que "cai". Um romance inesperado. Sobre conceitos acerca da biblioteca e o bibliotecário. Um filme sobre o inefável. Uma fábula.
O filme se desenvolve, boa parte, no interior da Biblioteca Estatal de Berlim (Staatsbibliothek zu Berlin) e arredores. As cenas na biblioteca caracterizam-se pela ausência de diálogos, pelo ritmo lento e mini-monólogos mentais.
A câmera narra, ora através do olhar dos anjos Cassiel ou Damiel, ora pelo olhar de um terceiro. Passeamos entre leitores, estantes e mesas enfileiradas, percebe-se assim toda a estrutura da Biblioteca Estatal de Berlim. Com eles, aos poucos, conforme caminham, vemos outros anjos na Biblioteca. Sabe-se que são anjos porque se cumprimentam com leves sorrisos e com movimentos de cabeça, já que os humanos não os vêem. Anjos-bibliotecários que guardam os leitores e auxiliam os estudantes. Talvez, mas de fato não se sabe o que eles fazem ali, mas demonstram gostar daquele ambiente, sentem-se à vontade na biblioteca.
Ouvem-se murmúrios, sussurros. Vozes mentais dos leitores que, num crescente, formam uma Babel. Porque neste ponto deferem-se dos humanos, que quando vão a uma biblioteca há um silêncio entrecortado por burburinhos aleatórios. Para os anjos de Wenders, a biblioteca é um dos lugares mais barulhentos, pois podem ouvir os pensamentos dos usuários. Todos estes aspectos dão a sensação de um ambiente onírico.
De repente, um velho sobe pelas escadas. É Homero, um contador de histórias. É dele a única voz interna que se pode distinguir e que se destaca dos murmúrios. Homero é o único a quem podemos ouvir. Cansado, ofegante, lamenta não ter mais a quem contar histórias: "Com o tempo, aqueles que ouviam a mim, tornaram-se meus leitores. Não sentam mais em círculo, mas a sós. E um não sabe nada do outro. Sou um velho de voz fraca, mas o conto ainda surge do fundo."
Paradoxalmente, o lugar da memória, a biblioteca, é antagonista de Homero. Ele não tem mais quem ouça suas histórias. As pessoas as lêem nos livros, solitariamente. A biblioteca de "Asas do desejo" é o lugar da humanização (dos anjos) e da cultura. Lugar onde a memória não apenas está guardada, mas de onde ela se desprende para circular entre os leitores. Lugar que abriga a palavra e que acolhe e torna possível a narrativa.
Traçando um paralelo, de tudo discorrido até este momento no filme, com a biblioteconomia, podemos nos questionar se a visão do mundo, lê-se, sociedade, sobre a biblioteconomia não é a de um mundo monocromático, de que o bibliotecário é um ser totalmente servil, que ouve e retém todas as solicitações, lamurias e dúvidas sem interagir, e somente se manifesta quando é necessário, assim como os anjos que só tocam os humanos mais angustiados. Não só pela sociedade, mas por muitos bibliotecários também é.
Será que a função do bibliotecário é andar sem ser percebido pelos leitores, assim como os anjos de Wenders?
Assim como Damiel, nós bibliotecários precisamos nos apaixonar e nos jogar no mundo biblioteconômico de tal forma que nosso mundo passe de monocromático a multicolorido, com cores vibrantes e explosivas, para que nossa paixão e entusiasmo sejam irradiados a todos que nos cerca. E que estas cores se espalhem pela nossa biblioteca com o intuito de que o conto que ainda surge do fundo, assim como em Homero, possa eclodir e transformar meros solitários em apaixonados também.